Todo mundo cantou Os Saltimbancos, nos anos 80, quando era criança: “Nós, gatos, já nascemos pobres, porém, já nascemos livres…” Sem perceber que havia uma tremenda mensagem política embutida. Quando se assiste hoje ? e há montagens que nunca saem de cartaz ?, a primeira associação é com A Revolução dos Bichos, de Orwell. Porque os animais se revoltam contra seus donos e resolvem fugir, como na novela do autor de 1984. Acontece que ? ao contrário de concluir que a “revolução” é apenas outra forma de opressão (entre os próprios bichos) ?, Os Saltimbancos insiste na luta de classes, maldizendo os “patrões” e navegando na maré política do Brasil de então.
Ainda sob o impacto da ditadura militar, havia o aceno da redemocratização, mas os bichos, n’Os Saltimbancos, são “o povo”, naquela visão romântica da época da fundação do PT: “explorado”, “injustiçado”, “oprimido” etc. Do PTantes da tomada do poder, vale dizer; antes da presidência de Lula, portanto. Quando o partido se colocava como o último reduto da “ética na política”.
Antes do mensalão… Assistir a Os Saltimbancos, hoje, é viajar no tempo… Quantos ideais, quanta inocência… Sendo que, atualmente,o próprio Chico Buarque não vota mais “com o PT”. Sentia-se responsável ? afinal Sérgio Buarque de Hollanda assinou a ata de fundação do partido e costumava dizer, antecipando o “discurso”, que, nos livros de História, se mpre faltava “o povo”…Os Saltimbancos “de Hollanda” ainda mistura um pouco do teatro de Ariano Suassuna: e o Jumento, que lidera a bicharada, tem a inteligência de um João Grilo, de uma Caroba, mas sem o mesmo humor, e sem a mesma poesia (afinal serve a um fim “útil”). Não seria errado aproximar o Jumento do sindicalista e líder operário Lula (e não pelos mesmos motivos que Diogo Mainardi aproximaria). Ocorre que o Jumento, com fama de “burro”, revela-se um líder nato, na peça. “Uma força da natureza”, como Collor definiu Lula. O Jumento vem “dos rincões”, não domina nenhum saber específico e desconfia dos apelos da “cidade grande”, que parece seduzir os outros bichos.
O texto, abrasileirado, evoca um País menos urbano. O Cachorro funcionaria como uma espécie de “Sancho Pança” do Jumento, entre a fidelidade e a falta de senso crítico. (Como um Chicó, d’O Auto da Compadecida?) Já a Gata tem a malícia da cidade grande, abusa do charme em benefício próprio, mas dialoga também com o feminismo à brasileira, com a mulher moderna, independente, pós-desquite… Os Saltimbancos, o título, num dado momento é confundido com “assaltantes de banco”, provavelmente fazendo alusão à “guerrilha urbana”, que, de fato, assaltava a bancos e, inclusive, sequestrava embaixadores, sempre em nome da causa (basta assistir a O que é isso, companheir o?, baseado no livro de Gabeira).
Aliás, ao reencontrar seus “donos”, todos reunidos na “Pousada do Barão”, os bichos fazem uso da força, colocando os “patrões” para correr e assumindo o controle da estalagem. Evidentemente uma sugestão de que o povo, um dia, chegaria ao poder ? por ser mais forte ou, numa democracia, por ser maioria. As “diretas” não viriam de imediato e a eleição do PT, com Lula, demoraria um tanto. Ocorre que, em 2002, o povo não chegou à “terra prometida” e o Brasil não se converteu no “paraíso” da propaganda política. O mensalão revelou que o PT queria se perpetuar no poder ? como qualquer outro partido? ?, e o grau de corrupção dos que falavam “em nome do povo” se revelou o mesmo, senão maior, que o de seus predecessores…
Ou seja: ao contrário do que a fábula pregava, a realidade, ou a verdade, se impôs; como sempre. Em clima de julgamento do mensalão, é interessante observar o gesto, anacrônico, de um Antonio Candido, que escreve para José Genoíno, ex-guerrilheiro, ex-presidente do PT, “em solidariedade” depois da condenação, como um desagravo, como se a máquina de comprar apoio do Congresso Nacional, montada pelo Partido dos Trabalhadores, fosse tão inocente quanto… aqueles assaltos a banco, amadorísticos, do filme de Bruno Barreto…
Aliás, oBarretão (pai) estava lá, ao lado de José Dirceu, sobre quem anunciou uma “cinebiografia”. E Fernando Morais, o autor de A Ilha, estava lá também, no apartamento de Dirceu… Chico Buarque, felizmente, capitulou; e dos outros… quando vai cair a ficha? Afinal: O po-vão é tão ba-ca-na…! Mas-também-não-é-nenhum-
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