Caso fechamento da agência de cinema se concretize, cineastas temem que segmento retroceda três décadas; em Minas, governo promete edital
Uma miríade de declarações do presidente Bolsonaro dadas nos últimos dias incorporou camadas em um temerário roteiro que vem sendo escrito nos últimos meses e tem como mira o cinema brasileiro. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) parece ser o alvo preferencial no momento.
Em poucos dias, Bolsonaro disse que pretende instalar ‘filtros’ na avaliação de filmes pela Ancine e depois sinalizou que quer transferir a agência reguladora do Rio para Brasília. Em seguida, comunicou que vai tirar da Ancine a gestão do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) – passaria para a Secretaria Especial da Cultura, deixando os recursos mais próximos de sua interferência ideológica, segundo temem os cineastas. A alegação mais radical veio nessa quinta, quando o presidente da República chegou a afirmar que planeja extinguir a Ancine.
As falas polêmicas de Bolsonaro vêm causando pânico entre os realizadores. Funcionários da Ancine assumem estar com medo de retaliação caso aprovem algum filme que desagrade ao presidente. O chefe do Executivo já criticou o uso de dinheiro público para realização do filme sobre a garota de programa Bruna Surfistinha. A caça às bruxas pode reaparecer.
O cenário de incertezas é interpretado com suspense pelos mais cautelosos e com terror pelos menos comedidos. “Temos apontamentos, mas ainda não há nada de concreto. A Ancine foi criada por projeto de lei e só pode ser extinta pelo mesmo modo”, avalia o cineasta Guilherme Fiúza. De toda forma, o consenso que parece existir é que a construção de políticas públicas voltadas ao audiovisual, algo consolidado nos últimos 25 anos, sofre agora seu momento de maior perigo.
Se a crítica entre os opositores do governo é quase unânime, mesmo entre seus apoiadores não existe denominador comum. Nessa sexta-feira, o cineasta Josias Teófilo, que trabalha na realização de um documentário sobre o presidente – e dirigiu o filme sobre Olavo de Carvalho, ‘O Jardim das Aflições’ –, disse que o fim da Ancine representaria o “dilúvio”. “Vai acabar com o cinema brasileiro, inclusive com os filmes evangélicos de que ele tanto gosta. Não vai poder ter filme nenhum”, revelou em entrevista a ‘O Globo’.
Diretor do filme ‘Bacurau’, junto de Kleber Mendonça Filho, o cineasta Juliano Dornelles vê com espanto a decisão alardeada pelo governo. “Quando um chefe de Estado ameaça fechar uma instituição que serve ao desenvolvimento do país, é (uma decisão) completamente estapafúrdia”, questiona. Seu filme ganhou bastante projeção internacional após faturar o Prêmio do Júri do Festival de Cannes em maio. “O que acontece no país é uma espécie de pesadelo que a gente aceitou mergulhar nele”, decreta o cineasta.
A Ancine é fundamental para a regulação e o fomento do cinema brasileiro, conforme explica Marcelo Ikeda, professor de cinema da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Meia dúzia de empresas controlam o audiovisual no mundo todo, as chamadas “majors”, por isso se justifica a Ancine, para que o cinema brasileiro continue existindo”, diz. “O cinema representa os modos de ser de um povo e é também uma atividade econômica. Isso é inalienável. A Ancine não pode ficar à deriva da mudança de governos”, completa o professor.
Igualmente indignado, o cineasta mineiro Helvécio Ratton sugere que uma defesa do cinema nacional venha, dessa vez, do Congresso: “Nossos deputados federais e senadores precisam ter a consciência muito clara do que isso representa. Esse tipo de governo não suporta a liberdade de criação artística”. Para Ratton, a hipótese, ainda que obscura, de instaurar “filtros” na Ancine, configura um retrocesso. “Há uma nítida intenção de controlar. Filtro é censura. Quem filtra é o espectador, que decide o que ele quer ver ou não”, contesta.
Mineiros encabeçam protesto
As ameaças de mudanças na Ancine, como a instalação de ‘filtros’ na escolha dos filmes contemplados, são chamadas pelos artistas de censura. Um protesto nascido em Belo Horizonte acabou frutificando país afora. Mais de 2.000 pessoas do cinema e de outros segmentos culturais já assinaram o manifesto, chamado Artigo 5º – em referência ao artigo da Constituição Federal que trata da liberdade de expressão –, como Alessandra Negrini, Ronaldo Fraga e Cao Guimarães.
A produtora cultural Tatyana Rubim é uma das organizadoras da ação, que vem sendo articulada pelas redes sociais. “A que filtros o presidente se refere? Sobre os temas abordados nos filmes?”, questiona.
Na avaliação de Rafael Neumayr, advogado especializado em direito do entretenimento, avaliar se determinado filme deve ou não ser contemplado pelo governo a partir de filtros é inconstitucional. “A Ancine já tem normas objetivas do que pode e não pode”, diz. Caso Bolsonaro insista na decisão de fechar a agência, acionar o Superior Tribunal Federal (STF) é uma das opções possíveis.
O que diz a lei
A Instrução Normativa 125 da Ancine regulamenta a elaboração e a análise e execução de projetos audiovisuais e determina, em seu artigo 4º: (…) são vedados objetos que se caracterizem como conteúdos jornalísticos, religiosos, políticos, manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos eletrônicos e programas de auditório ancorados por apresentador.
Tempo de espera em Minas
Abalar os mecanismos de fomento e incentivo canalizados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) significa quebrar um eixo importante da cadeia do audiovisual e provocar uma espécie de efeito cascata. Mas enquanto o presidente solta declarações polêmicas de um lado e entidades rebatem do outro, os realizadores mineiros redirecionam suas atenções para o cenário estadual. Nos últimos anos, parte do dinheiro que viabilizou importantes produções, como as da produtora “Filmes de Plástico”, contou com recursos dos cofres públicos locais.
Passados mais de sete meses da nova gestão do governo estadual, o Magazine apurou quais são os planos costurados para a política de audiovisual comandada pelo secretário de Cultura e Turismo, Marcelo Matte.
Há gargalos importantes a serem atendidos pelo governo, mas como a política do audiovisual foi regulamentada em lei estadual no apagar das luzes da gestão Pimentel, resta ao governante atual cumprir a legislação. Nesse sentido, os entendimentos nos gabinetes da Cidade Administrativa são de continuidade, ainda que a crise financeira deixa o cenário em terreno de vacas magras.
Garantida mesmo, por enquanto, apenas a publicação do edital Exibe Minas, cuja edição do ano passado acabou cancelada, o que deixou a categoria a ver navios. A nova versão do certame, no valor de R$ 980 mil, é prevista para acontecer neste semestre.
Algumas reuniões já foram realizadas por representantes do audiovisual com o governo, e a Câmara do Audiovisual da Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg) participa das discussões. “Sentamos com o setor para entender as demandas e as expectativas para estruturarmos políticas públicas”, informa o superintendente de fomento cultural, economia criativa e gastronomia da Secretaria de Cultura e Turismo, Felipe Amado.
Apesar de vários editais terem sido publicados pelo Estado nos anos anteriores, graças a arranjos que utilizam verba do Fundo Setorial do Audiovisual, gerido pela Ancine, neste 2019 ainda não há sinalização efetiva de novo mecanismo, segundo informações repassadas pela Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge). Os produtores reclamam de terem poucas informações e percebem uma guinada na administração da empresa, cuja gestão atual eliminou a diretoria de economia criativa, que concentrava investimentos em cultura. A reportagem solicitou entrevista com algum representante, o que foi negado.
A empresa confirma apenas a realização da grande feira do setor que já entrou no calendário de roteiristas e produtoras, a MAX – Minas Gerais Audiovisual Expo, cujas edições anteriores, realizadas no Expominas, chamavam atenção pela pompa e circunstância – quatro edições custaram quase R$ 7 milhões. O evento deste ano será menor e deve acontecer no fim de novembro, na sede do Sebrae.
Sem editais, Codemge confia em fundo de investimento
Com a falta de editais voltados aos vários setores da cadeia do audiovisual vindos da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge), a companhia aposta em outra frente.
Trata-se do Funcine – Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional de Minas Gerais, um fundo de investimento lançado no ano passado e atualmente gerido pela empresa Investimage Asset Management. Segundo a Codemge, a intenção é ser um instrumento para a promoção e o fortalecimento da cadeia produtiva do audiovisual. O investimento já atingiu a marca de R$ 5 milhões, mas os profissionais do setor ainda não veem a iniciativa com clareza.
No âmbito municipal, a Secretaria de Cultura vai lançar mais dois editais para o audiovisual em agosto, no valor total de R$ 5,2 milhões, para as áreas de games e longa-metragem.
Indecisão atrasa projetos estaduais
Tanta indefinição federal atormenta não somente os cineastas, mas também os formuladores de políticas públicas. Com uma lei do audiovisual que saiu do forno há pouco, Minas Gerais também pena com essas incertezas. “O cenário (está) meio conturbado no governo federal, então estamos vendo qual a melhor forma (de desenvolver a política de audiovisual). Com essa instabilidade, o próprio setor está um pouco inseguro”, reconhece o superintendente de fomento cultural, economia criativa e gastronomia, Felipe Amado.
O segmento audiovisual conseguiu se tornar exemplo de articulação nos últimos anos, mas, neste primeiro semestre de 2019, os realizadores parecem estar em ritmo de espera.
Como o Estado possui um Programa de Desenvolvimento do Audiovisual Mineiro (Prodam), a situação ao menos tem garantias legais estabelecidas. A Secretaria de Cultura e Turismo avalia como atender a determinação de compor o conselho diretor do programa.
A pasta também se debruça sobre currículos para o cargo de assessor do audiovisual, criado pela reforma administrativa de Zema. O ocupante deve ser nomeado como secretário executivo do Prodam. Investir na Minas Film Commission, ação que visa atrair produtores audiovisuais a usarem as paisagens mineiras como cenário de seus filmes, é prioridade da secretaria.