Reprodução de trecho da dissertação de mestrado “O direito econômico da cultura: uma análise dos gastos públicos indiretos com cultura”, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor José Maria Arruda de Andrade.

O Direito Econômico da Cultura congrega o conjunto de técnicas jurídicas utilizadas pelo Estado na realização de sua política econômico-cultural. Este não constitui um novo ramo autônomo do direito, mas um capítulo do Direito Econômico, marcado por algumas características que lhe são próprias.

Primeiramente, incorpora e destaca em suas fontes secundárias a produção teórica das ciências sociais. O Direito e a Economia não podem fornecer todo o instrumental teórico e conceitual necessário para a plena compreensão dos fenômenos culturais. Questões como a identidade cultural ou o bem-estar cultural, típicas das políticas econômico-culturais, só podem ser debatidas com auxílio da antropologia, sociologia e semiótica.

Conforme exposto no tópico anterior, o Direito Econômico da Cultura lida com um mercado com certas peculiaridades decorrentes da natureza simbólica e imaterial de seus bens e serviços. Os pressupostos básicos da economia, por vezes, não se aplicam aos setores culturais. Isso requer não apenas um ajuste “de olhar” dos próprios agentes desse mercado, dos gestores públicos e, claro, do operador do direito. Podemos afirmar, com bastante serenidade, que o direito e seus institutos nem sempre consegue responder às demandas e transformações dessa economia, que a todo momento apresenta novas formas de contratação, de geração de valor, de trabalho e assim por diante. Nos parece que a centralidade da inovação e inventividade na economia criativa exige um esforço correspondente de criatividade jurídica pelo Direito Econômico da Cultura.

Como não poderia deixar de ser, o Direito Econômico da Cultura fundamenta-se primordialmente na Constituição Federal, ou seja, nos princípios e objetivos fundamentais da república (artigos 1º e 3º), nos ditames da ordem econômica (sobretudo os artigos 170 e 219) e assim sucessivamente. Argumentamos, porém, que este capítulo dá maior destaque à disciplina normativa constitucional da cultura (especialmente os artigos 4º, § único, 5º, incisos XXVII, XXVIII e LXXIII, 23, incisos III, IV e V, 24, incisos VII e IX, 30, IX, 210, 215, 216, 216-A, 220 a 224, 227, 231, §1º, e 242, § 1º).

Por certo, não pretendemos afirmar que o Direito Econômico, assim como o Direito Civil, o Direito Administrativo e outros campos da dogmática, possam simplesmente ignorar os comandos constitucionais (e infraconstitucionais) sobre a cultura. Trata-se, pois, de “mera” questão de enfoque, de acomodação visual.

Não nos parece, por exemplo, que este capítulo disponha de uma base própria de princípios. O que ocorre, justamente, é a ênfase na aplicação e conciliação de princípios da ordem econômica e da ordem cultural. Imagine-se uma proposta de política de incentivo à concentração de pequenas produtoras de audiovisual com vistas à formação de grandes estúdios nacionais, ampliando a competitividade do cinema brasileiro no mercado internacional. Essa medida pode trazer resultados econômicos positivos, mas também pode atentar contra o princípio da diversidade cultural. Esse parece ser um típico desafio do Direito Econômico da Cultura.

A percepção do Direito Econômico enquanto método de análise, partindo-se da compreensão de que o próprio direito é parte integrante da realidade social, tem muito a ganhar com a incorporação dos elementos ou fatores culturais. Afinal, não é pouco ressaltar que o Direito é um produto da cultura, como já haviam notado Geraldo Vidigal, Washington Peluso, Modesto Carvalhosa e Eros Grau. O mesmo vale para o mercado que, na lição de Karl Polanyi, tampouco é fenômeno idêntico em todos os momentos históricos e partes do globo. Sem receio de pecar pela obviedade, sublinhamos que a cultura conforma e transforma o direito e a economia, ao mesmo tempo que por eles é conformada e transformada.

O Direito Econômico da Cultura oferece ainda uma oportunidade qualificada de debate entre a economia política e os estudos culturais. Afinal, a compreensão das formas pela qual o excedente é produzido e distribuído também envolve a compreensão das dinâmicas das relações culturais entre os indivíduos e coletividades. A cultura pode sustentar estruturas de dominação e apropriação de riquezas, enquanto o direito poderá legitimá-las ou contestá-las – e vice-versa.

A cultura liga nosso passado, presente e futuro. Ela nos oferece sonhos, valores e formas de ver o mundo que orientarão os rumos da ação humana. Ação esta que será organizada materialmente pela economia. O Direito Econômico da Cultura é o mediador e o elo entre nossos recursos presentes e o porvir. Não se trata de mera questão alocativa para garantir o bem-estar material e imaterial. O Direito Econômico da Cultura está vocacionado à transformação do futuro.

A seguir, apresentaremos três possíveis sentidos para o Direito Econômico da Cultura, de acordo com suas aplicações e finalidades: (i) conjunto de técnicas jurídicas voltadas à correção das falhas do mercado de bens e serviços culturais e promoção da economia da cultura; (ii) conjunto de técnicas jurídicas para garantir as necessidades culturais da população por meio de arranjos econômicos; (iii) conjunto de técnicas jurídicas vocacionado à superação do subdesenvolvimento, sobretudo, em sua dimensão cultural.

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Na conceituação de Humberto Ávila, princípios são “normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.” ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 203. Esclarecemos que a opção pelo conceito de Humberto Ávila é meramente ilustrativa, de modo que não intentamos adentrar no debate conceitual sobre princípios.

A Lei n.º 12.343/2010, que instituiu o Plano Nacional de Cultura, traz em seu rol de princípios positivados: a liberdade de expressão, criação e fruição; a diversidade cultural; o respeito aos direitos humanos; o direito de todos à arte e à cultura; o direito à informação, à comunicação e à crítica cultural; o direito à memória e às tradições; a responsabilidade socioambiental; a valorização da cultura como vetor do desenvolvimento sustentável; a democratização das instâncias de formulação das políticas culturais; a responsabilidade dos agentes públicos pela implementação das políticas culturais; a colaboração entre agentes públicos e privados para o desenvolvimento da economia da cultura;  e a participação e controle social na formulação e acompanhamento das políticas culturais. Sobre os princípios culturais, conferir: VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: Direitos e Políticas Culturais no Brasil. Op. Cit., pp. 87-90. CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Cultura e Democracia na Constituição Federal de 1988a representação de interesses e sua aplicação ao programa nacional e apoio à cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.

Cf. POLANYI, Karl. A Grande Transformaçãoas origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Compus, 2000.

Para uma bibliografia introdutória sobre a economia política da cultura, conferir: BRITTOS, Valério Cruz; KALIKSKE, Andres (orgs,). Economia política das indústrias culturais: comunicação, audiovisual e tecnologia. Porto: Media XXI, 2012. BOLAÑO, César; MANSO, Anna Carolina. Para uma economia política do audiovisual brasileiro. Cinema, televisão e o novo modelo de regulação da produção cultural. São Paulo: Escrituras, 2009. HERSCOVICI, Alain. A Economia política da Informação, da Cultura e da Comunicação: questões metodológicas e epistemológicas: uma apresentação geral. In: Revista de Economia Política de las Tecnologias de la Información y Comunicación. Volume V, n. 3, Sep/Dic. 2003. BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Indústria cultural, informação e capitalismo. São Paulo: Pólis: Hucitec, 2000. COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural: Leituras de análise dos meios de comunicação na sociedade contemporânea e das manifestações da opinião pública, propaganda e ‘cultura de massa’ nessa sociedade. 2ª Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975.

Transcrevemos aqui a interessante passagem de Geraldo Vidigal, que muito dialoga com a proposta de Farjat, acerca da importância do Direito Econômico da Cultura na definição e construção do futuro: “Porque cada espírito humano realiza construções em um sentido peculiar, porque cada um recebe um conjunto diferenciado de informações daquilo que está sendo construído pelos demais, porque cada um julga o que dos outros recebe segundo os critérios do acervo de seus dados anteriores, porque afinidades e bloqueios culturais tornam cada povo ou cada grupo social diversamente sensível às diferentes afirmações que a ele chegam — os diferentes grupos humanos, as diferentes esferas políticas, em diferentes situações de organização da consciência social, vão escolhendo diferentes caminhos e soluções institucionais. A síntese histórico-cultural denuncia a inconveniência de destruir os mercados ou de submeter-se a eles, e impõe o dever de organizá-los, para aí colher o conjunto de informações que veiculam, para utilizar os instrumentos de aferição de eficiência que contêm, vedando-lhes entretanto funcionarem como condensadores de crises, como veículos para a ação predatória de monopólios, como campos de força para a repartição desigual.” VIDIGAL, Geraldo. Teoria Geral do Direito Econômico. Op. Cit., p. 16.

Veja o texto na íntegra: http://institutodea.com/artigo/nocao-e-objeto-de-direito-economico-da-cultura/